ARTIGOS ETÍLICOS

FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DO ALCOOLISMO


O álcool, enquanto é consumido, debilita o bebedor fisicamente e o anima espiritualmente. Este é o paradoxo do alcoolismo. Enquanto vai se bebendo, o corpo perde paulatinamente seu equilíbrio, o controle preciso sobre os movimentos, a articulação da fala, enfim, todos os sentidos são vítimas da ação nefasta da bebida alcoólica.
Ao mesmo tempo em que quedam os sentidos e movimentos do corpo, ascendem as qualidades espirituais. O sujeito torna-se sincero, afetuoso, companheiro e altruísta. A capacidade de filosofar nasce em quem não havia e cresce em quem é sempre pequena. Não quero dizer que simplesmente enchendo-se a cara, enfiando-se o pé na jaca ou entornando-se o caldo teremos uma sociedade de alcoólicos filósofos. É um exagero comparar o álcool a um tônico eficiente para o espírito.
Naturalmente que estes dois paralelos, o ânimo espiritual e a debilidade física, se encontram em algum ponto do horizonte quando se bebe em excesso. Daí então o álcool já não anima mais o espírito e se une ao que antes fora seu oposto, a debilidade física. O espírito dá princípio a uma queda que acompanha o corpo. Até agora nos encontramos no campo da imanência do sujeito alcoolizado.
O fim desta queda é quando se atinge um nível de álcool tal que o sujeito perde a memória por completo. Este é um estado que muitos de nós já passamos. Bebe-se em tão grande exagero e descontrole que quando transcorrido o efeito da bebida nota-se a perda da memória. Não por descoberta própria obviamente, mas porque os outros presentes lhe narram os fatos.
O momento da perda da memória significa que o espírito do sujeito alcooliza passou para outro plano de existência, outra realidade onde seu corpo físico não pode lhe acompanhar. Sendo a memória uma capacidade inerente ao cérebro e sendo este matéria, o espírito quando alcança o outro plano não poderá lembra-se do que se deu no plano onde deixou seu corpo. A memória daquele plano, se existindo, só a ele pertence e só lá poderá ser acionada. Chamamos a isso de transcendência do sujeito alcoolizado. Note o leitor que a transcendência exige grande esforço do sujeito, o que o debilita severamente após retornar ao plano de seu corpo físico.
Fundamentou-se acima a metafísica do alcoolismo.




ANALOGIA ENTRE O BAR E O SALÃO DE BELEZA


Há um universo masculino e outro feminino, já sabemos. Em cada um destes universos existe um lugar privilegiado de encontro e discussão próprios. Trata-se de um sectarismo sexual socialmente e informalmente estabelecido pela necessidade que males e females tem em encontrar seus iguais a fim de tratarem de assuntos que só a cada gênero interessa. Questão de sobrevivência. Se para o homem esse lugar é, em geral, o bar, para a mulher certamente é o salão de beleza. As mulheres não são e nunca foram dadas a bebidas alcoólicas em exagero, ao cheiro forte de um banheiro de bar ou qualquer outra grosseria ambiental.
Por isso elas criaram um ambiente social análogo ao bar, porém em acordo com a sensibilidade feminina. Um lugar confortável, limpo, de bons ares, onde a cerveja é substituída pelo chá e o garçom pelo cabeleireiro. Tanto aqui quanto ali se evoca assuntos de todos os níveis. Criticam-se ou exaltam-se os cônjuges. Lamenta-se ou celebra-se a vida. Cá e lá, cabeleireiros e garçons tornam-se confidentes. Donos de salão e donos de bar esbravejam contra os impertinentes e maus pagadores. Se no bar o preço da cerveja movimenta multidões de machos, no salão de beleza ocorre o mesmo quanto ao preço do corte de cabelo, da escova ou da pintura. Salões de beleza multiplicam-se pela cidade e já contam em número muito próximo ao de bares.
O que pode haver de utilidade prática na digressão acima para nós bares vivendis? Dir-vos-ei: se sua mulher vai ao salão de beleza, nesse preciso momento vá você ao bar. Se fores ao bar então diga a ela que vá ao salão, e que não tenha pressa de voltar. Assim ambos os sexos estarão sempre satisfeitos um com o outro. Ao fim, quando se encontrarem, teremos a exacerbação, o avultante das qualidades de cada um do par.
De um lado o homem com sua protuberância abdominal depois de horas comendo e bebendo excessivamente. Seu aspecto é a de um bêbado qualquer encerrando em si todos os odores possíveis de existirem em um bar. Desde o cheiro de álcool, passando pela fritura, até chegar ao tabaco. Roupas amarrotadas, cabelos desgrenhados, transpiração excessiva, ele se arrasta alegre ao encontro de sua mulher que acaba de sair do salão. E lá está ela! Cabelos alinhados, perfeitamente tingidos, sobrancelhas feitas e maquiagem exuberante, perfumes florais e amadeirados levam-na numa nuvem delicada e sutil.
Aos poucos, porém, tudo volta ao seu normal. O homem, longe do bar, agora está sóbrio, faz a barba e penteia-se. Arruma-se com roupas engomadas e elegantes para ir trabalhar. Na mulher, por sua vez, vence a pintura e os cabelos brancos avançam, o toucado deforma, a maquiagem derrete, crescem as sobrancelhas. Toda essa dualidade nos mostra, em resumo, que o bar é um mal passageiro e o salão de beleza um bem também passageiro, logo, se sua mulher é feia, será um mal eterno. Tudo isso significa que devemos lembrar mais uma vez e sempre: vamos ao bar, tornamo-nos feios para nossas mulheres e que elas se embelezem para nós, nessa roda sem fim. Eterno retorno dos bares.




DE COMO A FILOSOFIA DOS BARES NOS AJUDA A VIVER


Em tempos de individualismo exacerbado, de economia intelectual e da mesquinhez das relações sociais prefere-se as discussões rasas, os assuntos órfãos que se abandonam e se adotam ao acaso. É a economia dos neurônios. Um sujeito sábio quando sentado em uma mesa em que prevalecem pessoas ignorantes será sempre tão ignorante quando um ignorante sentado em uma mesa em que prevalecem pessoas sábias. Os espíritos de hoje se furtam de maiores esforços e saltos demasiado largos em questões relevantes, afora os pedantes. É a economia do pensar.
É contra essa economia que vos digo, e vos digo também que devemos estar sempre prontos a ouvir com interesse o que o outro sentado na mesa do lado tem para nos dizer. Temos em nossos bares gentes diversas de vivências diversas, que seguem sistemas filosóficos próprios os quais valem muito serem apreciados. Destes filósofos empiristas, que em nossos bares muitos freqüentam, cada qual nos ilumina para nobres valores e nos repele a outros tantos que não são tão nobres assim. Claro, nem tudo é perfeito e devemos ter discernimento afinal.
[...] em sociedade deve [-se] prestar atenção a tudo, [...] os primeiros lugares são muitas vezes ocupados pelos menos capazes e o bafejo da sorte quase nunca atinge os competentes. [...] não raro, enquanto conversam à cabeceira da mesa acerca da beleza de uma tapeçaria ou do sabor da malvasia, bons ditos se perdem do outro lado. Terá de sondar o valor de cada um: boiadeiro, pedreiro ou viandante. Cada qual em seu domínio pode revelar-nos coisas interessantes e tudo é útil para nosso governo." (MONTAIGNE. Ensaios I. Cap. XXVI. p. 83. 1580)
Montaigne, que também foi um bares vivendis do séc. XVI, resume acima de forma belíssima o espírito filosófico que deve fazer parte de todos os bares vivendis.



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